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Roda Dos Livros

Encontro de Outubro/2025

Célia, 02.11.25

O sábado chuvoso que encontrámos no passado dia 25 não foi suficiente para nos afastar de mais uma tarde de conversas em torno dos livros. Aliás, há mesmo quem ache que o tempo chuvoso e frio (ainda não muito) é o mais propício a estas sempre animadas tertúlias.

Desta vez, a chuva não foi só lá fora porque a casa estava cheia, incluindo um novo leitor canino, desta vez a fofa Trufa, que distribuiu lambidelas e simpatia. 

Fui eu a abrir as hostilidades, destacando "Fome", de Roxane Gay, e "Prisioneiros da Geografia", de Tim Marshall. Ultimamente, ando mais virada para as leituras de não ficção e estes dois foram os que mais me marcaram de entre os últimos lidos. "Fome" é um relato cru e visceral sobre o trauma e a obesidade, provando que Roxane Gay é excelente seja a escrever ficção ou não ficção. "Prisioneiros da Geografia" é um livro que permanece atual, mesmo após 10 anos decorridos sobre a sua publicação original e considerando que a geopolítica é uma questão em permanente alteração.

A Sónia foi a cliente que se seguiu, e recomendou-nos "Inyenzi ou as Baratas", de Shcolastique Mukasonga, um livro que trouxe uma visão impactante sobre o massacre do Ruanda nos anos 1990. Outra leitura referida, infelizmente não com um impacto tão forte, foi o clássico "A Morte de Ivan Ilitch".

De seguida, "A Coroa" de Sigrid Undset não deslumbrou a Renata mas serviu para que as rodistas presentes percebessem a diferença entre as palavras percursor, precursor e percussor, provando que podemos sempre ver o copo meio cheio! "Por Dentro do Chega" foi também um livro bastante falado nesta Roda, tendo as leitoras presentes sugerido que fosse consumido em doses homeopáticas. A Renata recomendou-nos "Gaza está em toda a parte", de Alexandra Lucas Coelho, um livro de crónicas acompanhadas de fotos que a autora coligiu após viagens recentes ao local.

A Vera deixou-nos imensas recomendações, com particular destaque para "Dei-te os olhos e viste as trevas", de Irene Solá (que título fantástico!) e "A chuva que lança areia do Saara", de Ana Margarida de Carvalho. Também a Cristina Delgado, que faz magia e consegue ler pelo menos sete livros ao mesmo tempo , nos deixou imensas sugestões, com destaque para "Eu Tituba, Bruxa... Negra de Salem", de Maryse Condé, uma ficção histórica sobre esta personagem real.

A Fernanda partilhou connosco a sua paixão por Elizabeth Strout, cuja obra ainda continua a descobrir, tendo-nos recomendado "Amy e Isabelle" e "Abide With Me". Tem também andado a descobrir a obra da Nobel coreana Han Kang, com "A Vegetariana", "Atos Humanos" e "Lições de Grego". Não esquecer os textos de Eduardo Galeano em "O Caçador de Histórias", um livro difícil de catalogar em que se alternam contos, crónicas, memórias, poesia e micro-ficção.

A Márcia estava a terminar e a gostar muito de "O que podemos saber", o livro mais recente de Ian McEwan, uma espécie de distopia com um pendor mais literário e filosófico, que promete fazer-nos refletir sobre o que andamos a fazer ao nosso mundo atualmente e no legado que deixaremos a gerações futuras. Claro que todas adorámos também ouvir a Márcia falar sobre os livros que começou e não terminou .

A Ana Borges recomendou-nos em especial "O Cérebro Ideológico", de Leor Zmigrod, um livro de não ficção que promete explicar com fundamento científico porque é que somos mais ou menos propensos a aderir a determinados dogmas.

Para finalizar, as recomendações das nossas Sofias: a Sofia Antunes falou-nos de "The Inheritance of Loss" (A Herança do Vazio), de Kiran Desai, um livro que venceu o Booker Prize em 2006 e que aborda os efeitos do colonialismo e do pós-colonialismo na Índia; a Sofia Castro deixou-nos com a recomendação de "Imperatriz" de Pearl S. Buck, uma biografia ficcionalizada da última imperatriz chinesa, Cixi.

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Em novembro há mais!

Setembro e uma mão cheia de leitores

Efeitocris, 10.10.25

Numa tarde quente ainda a cheirar a verão (felizmente!), a Roda parecia encolhida. Éramos cinco e mal enchíamos uma mesa. Mas cinco é uma mão cheia ou mancheia e tal como as mãos que nos guiam nos gestos mais simples ou nos sustentam nos mais complexos, foram esses cinco leitores os suficientes para abraçar tantos temas e sentimentos como livros que abarcaram o mundo inteiro. Claro que foram - e são sempre 😄 – mais os livros que os dedos das mãos.

Isso é certo e maravilhoso nos nossos encontros mensais.

Então vamos lá saber mais sobre essa mão cheia de livros. 

O polegar, símbolo de aprovação, ergueu-se para todos, é claro, mas talvez o like maior vá para «Leitura Fácil» de Cristina Morales por ser uma narrativa sui generis, carregada de vozes peculiares e talvez possamos até dizer que tem um impacto militante e tantos são os seus temas que não há dedos suficientes para apontar todas as questões que o livro levanta com brutalidade e “bastardismo”.

Esticando o indicador, deixamos que aponte para «Racismo Woke» de John McWhorter, cheio de interpelações ao leitor e alertas. Um livro indicador de polémicas e pedidos de atenção — para o uso das palavras, para as camadas do ativismo identitário e para os lugares de luta anti-racista e todas as polémicas envolvendo o tema.

Entre o polegar e o indicador, formou-se o gesto 👌. E ali encaixou-se «Uma mulher desnecessária» e outro não lhe poderia tomar o lugar. A obra de Rabih Alameddine obriga a unir esses dois dedos num sinal de excelência, que nos levou a pensar no quanto é envelhecer invisível. É uma narrativa de resistência através da leitura e dos livros, uma lição sobre cooperação e vizinhança e sobreviver nas franjas da sociedade.

Com ligação directa ao coração ou no anelar podemos colocar vários dos livros falados durante o encontro. «O caminho do sal»; «Portugal hoje, o medo de existir»; «Lucy» ou ainda «As crianças adormecidas». Os sentimentos e seus desdobramentos, raízes, traumas e liberdade, tudo ecoa e encaminha para a memória colectiva e a afectividade. Por isso, no dedo das alianças, compromissos e promessas escondem-se vozes contida, intensidades e superações, mas também gritos de denúncia e manifestos.

Restando ainda o mindinho, pequeno e essencial para o equilíbrio, traz-nos detalhe e minucia, por isso «Líbano – uma biografia», «Um país sem amor» e «The story of a heart» que, à primeira vista, são livros discretos, mas completam histórias com História, sustentando temas densos sem alarde ou exageros.

Mas onde encaixar «Reencontros» de Fred Uhlman ou os já repetentes «Lobos» de Tânia Ganho e «O relatório Brodeck» de Philippe Claudel? Livros que escorregam entre os dedos, inquietos e que resistem ao encaixe. Falam de medo, exploram fábulas, denunciam a violência, engrandecem a resistência e exploram realidades que arrepiam. São narrativas que cabem na palma da mão, mas com facilidade esmiúçam o mundo à sua volta.

Então, sem mais demoras e deste encontro com anatomia simbólica, eis a pilha de recomendações.

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Foram 5 dedos 5 leitores e um gesto essencial: abrir a mão e estender o que se leu ao outro. E mesmo que sejamos poucos, quando há escuta, há um mundo a descobrir.

Apontamentos de leitura - III - Liane Moriarty

Ana CB, 25.09.25

O começo da minha “relação” com os livros de Liane Moriarty não foi dos mais auspiciosos. Terá sido há uns três ou quatro anos, e o livro foi “Nove Perfeitos Desconhecidos”. Deixou-me tão pouco entusiasmada que sobre ele apenas escrevinhei um apontamento tão sucinto quanto desprendido: “Razoável, sem ser nada de especial. Um bocado confuso e a atirar para o guião cinematográfico”.

Mantive o meu desinteresse por esta escritora até há alguns meses meses, quando a Sónia Maia falou do “Pequenas Grandes Mentiras”, com grande entusiasmo, numa das nossas Rodas. Decidi dar uma nova oportunidade a Liane Moriarty, e ainda bem que o fiz. Achei o livro super original, com um enredo bem desenvolvido que me agarrou logo desde as primeiras páginas, e li-o quase de uma assentada. E a esse seguiram-se vários outros. Estou sinceramente fã. É verdade que usa uma técnica semelhante em todos eles – começa pelo acontecimento marcante, intrigante, e depois vai andando para trás e para a frente até que o mistério é finalmente desvendado – mas consegue encontrar um tema central diferente para cada um. Os enredos misturam relações familiares, questões sociais e personagens cheias de inquietações pessoais (por vezes algo cliché) ou “fora da caixa”, situações caricatas, e uma dose de humor q.b. Pode haver quem ache que são histórias leves, pese embora todo o conteúdo misterioso, quase “policial”, que sempre têm. Mas se olharmos para toda a panóplia de temáticas actuais que abordam, percebemos que não é bem assim. Os temas importantes podem ser eficazmente abordados sem ser preciso usar pinças e gravitas.

 

PEQUENAS GRANDES MENTIRAS

Bertrand.pt - Pequenas Grandes Mentiras

 

Pode um livro tratar de temas sérios com ironia e algum humor? Pode, e este livro é a prova. O pano de fundo é uma escola primária numa localidade australiana, à volta da qual gravitam famílias com histórias variadas. Conflitos familiares e geracionais, guerrinhas sociais, e sobretudo violência não revelada, escondida por vergonha. A narração parte de um acontecimento que se percebe ser grave e depois recua para períodos anteriores com a finalidade de nos mostrar os antecedentes do sucedido. Em cada capítulo há também apontamentos soltos – por vezes com um humor subliminar – de vários intervenientes secundários. A forma como a história é narrada prende-nos até ao fim. A escrita é fluida e muito competente, e consegue convocar imagens na nossa imaginação. Excelente.

 

O SEGREDO DO MEU MARIDO

Bertrand.pt - O Segredo do Meu Marido

 

Duas histórias paralelas à volta de duas mulheres, que em comum têm pouco mais do que a localidade onde estão a viver e o facto de verem a sua vida repentinamente virada do avesso, mas ambas com decisões difíceis para tomar. Como seria se um determinado acontecimento não tivesse ocorrido? Quais as consequências das nossas por vezes impulsivas acções? Até que ponto nos conhecemos? Um ambiente de cidade pequena onde as personagens principais têm de lidar com os seus sentimentos de culpa, cada uma fazendo-o à sua maneira. Crime e expiação. Fazemos as coisas pelos outros, ou isso é uma desculpa para o nosso próprio egoísmo? A autora consegue gerir com mão de mestre uma teia de personagens e acontecimentos interligados, onde o humor escapa por entre os fios da tragédia. Um final mais suave do que esperava, mas aceitável. Muito bom.

 

A QUALQUER MOMENTO

Bertrand.pt - A Qualquer Momento

 

Uma senhora levanta-se do seu lugar, numa viagem de avião, e dirige-se a cada passageiro, dizendo-lhe a idade em que irá morrer e de que maneira. Quem é ela? O que a levou a esse estranho comportamento, de que mais tarde não se recorda? E como reagir às suas previsões? O tema da morte e do que faríamos se soubéssemos quanto tempo nos resta de vida é tratado neste livro de forma magistral. A história da Senhora da Morte (como passa a ser apelidada) é contada alternando com as de várias outras pessoas que iam naquele avião. Cada uma destas pessoas tem as suas próprias características, comuns ou menos comuns, as suas inseguranças – e através delas a autora toca em inúmeras questões da vida e da sociedade nos dias de hoje, num estilo de escrita rápido e fluente a que já nos habituou, cheio de pormenores e imaginação. Será que as nossas vidas estão predestinadas, ou existe realmente livre arbítrio? Até que ponto as nossas opções condicionam o nosso futuro? Coincidências são só coincidências? Como sobreviver à morte de um ente querido? Há neste livro (que li quase compulsivamente) um cocktail de dúvidas que todos nós nos colocamos, nem que seja só uma vez na vida. Excelente.

 

QUEM SAI AOS SEUS

Bertrand.pt - Quem Sai aos Seus

 

O efeito que traumas de infância podem ter nas vidas não só das crianças e no seu futuro, mas no de todos quantos estão à sua volta e com quem elas se cruzam. A necessidade e dificuldade em corresponder às expectativas dos outros, e o que isso pode desencadear. O desaparecimento de uma mãe de família, depois de um período em que essa família se viu posta em causa, levanta questões em que os filhos nunca ousaram pensar, revelando o melhor e o pior das suas personalidades. Será que mesmo as famílias aparentemente mais felizes também podem ser disfuncionais? Será que podemos ser ao mesmo tempo boas e más pessoas? E conseguirá o amor sobrepor-se às mágoas? Como é habitual, a autora consegue abordar uma variedade de questões sociais – com espírito crítico e certeiro, e onde não falta uma chamada de atenção para o peso das obrigações que as mulheres continuam a carregar, e da incompreensão de que são alvo – num enredo cheio de mistérios, que navega (como também é hábito nas suas tramas) para trás e para a frente no tempo, até que toda a verdade seja revelada. Muito bom.

 

Também há rios no céu, de Elif Shafak

Patrícia, 22.09.25

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Uma gota de água cai sobre Assurbanípal, em Nínive, Mesopotâmia. A mesma gota de água é uma lágrima de Zaleekah, é um floco de neve no nascimento de Rei Artur dos Esgotos e Pardieiros (quão maravilhoso é este nome?) e testemunha de Narin. A ideia da memória da água é fabulosa e central neste livro que nos conta as histórias de 3 personagens, em três tempos diferentes. Artur, um menino nascido nas margens do Rio Tamisa em 1840 é baseado em George Smith, o tradutor da Epopeia de Gilgamesh, e é O personagem. Durante muitas páginas acompanhamo-lo a encontrar o seu destino. Zaleekah é uma mulher do nosso tempo, numa viagem de autoconhecimento, de reconstrução após um divórcio complicado. E Narin, uma menina com um diagnóstico de surdez que me levou a conhecer a história dos Yazidis, uma minoria religiosa curda que sofreu um genocídio pelo estado islâmico entre 2014 e 2017. A forma como as vidas destas três personagens se entrelaçam é a magia deste livro.

Há livros que nos agarram nas primeiras páginas, que nos obrigam a ler mais e mais. São esses que procuramos sempre que começamos mais uma leitura. E é isso que eu encontrei neste Também há rios no céu.

Apesar de já ter tido várias recomendações nunca tinha lido nada da escritora, agora quero ler tudo. Encontrei uma história bem contada, dura, mas com esperança. Não é uma história de amor, mas há muito amor nestas páginas.

Com Artur conhecemos uma história de superação, de alguém que não pertence ao seu tempo, à sua própria realidade, que precisa afastar-se para se encontrar. Com Zaleekah, o reconhecimento. Poderia ser amiga desta mulher, profissional competente que luta para sair da sombra dos homens e para descobrir quem é. A Narin, uma menina que é vítima da maldade humana e que, no mundo de hoje, representa demasiadas crianças.

Este foi, sem dúvida, um dos melhores livros do meu ano de leituras.

Para ver quem é que anda à Roda * Encontro de Agosto

Efeitocris, 28.08.25

Se me dissessem que em Agosto íamos reunir com casa cheia, um clima ameno e a calma doce da Dona Aveia a guiar a reunião, eu não acreditaria. E porquê?

Ora… porque as reuniões de Verão tendem a ter poucos rodistas e a Dona Aveia anda numa de participação esporádica e muito selectiva, só quando mesmo lhe apetece. Já para não falar das temperaturas de canícula que afastam outros participantes.

E além do mais, a reunião de Agosto chegou antecipada, mas felizmente teve como brinde uma leve brisa que aconchegou uma ou outra sesta, porque afinal o membro canino tem alguma idade e as tardes estivais pedem sempre uma power nap. E afinal, aos chefes tudo é permitido! Certo?

Claro que sim!

Aquele riso patudo derrete-nos os corações. Firmou-se no centro da Roda como quem diz: “A reunião começou, pessoal. Quem fala primeiro? Patrícia, és já tu.”

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E assim foi. E a Patrícia falou.

E falou de dramas familiares, sagas que estendem a gerações e aventuras fantásticas em Rio Perdido e mais uma vez Blackwater foi alvo das nossas atenções. Mas antes que a conversa se perdesse, a Don Aveia deu uma rosnadela  diplomática e apontou as orelhas… “Não vamos já começar a desordem, pois não meninas?”

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O que nos faltava mesmo era uma patada destas. Gentil mas determinada. Um convite à ordem pouco regrada que pauta cada Roda.

E mesmo que Blackwater tenha laivos de novela mexicana, não deixamos que os mariachi entrassem e seguimos com uma reunião tranquila e ouvimos a Patrícia nos contar que “Também há rios no céu” e que os livros de Elif Shafak merecem muito ser lidos e aqui a escriba segredou à sua patuda que nunca leu um livro da Shafak… Se calhar devias, disse a Dona Aveia em tom de sugestão, mas para quem a conhece sabe que queria dizer: “Não digas isso a ninguém e vai já corrigir essa lacuna. E no regresso traz biscoitos.”

O inventário podia continuar, mas sorte de um patrão sonolento é que em breve baixa a guarda e deixa a malta em auto-gestão, só assim podemos discutir e afirmar que «O inventário de sonhos» da Chimamanda fica um pouco a dever ao entusiasmo de outrora das suas narrativas africanas e que vamos metendo uns livros pelo meio desta leitura, que é como quem diz que nos sentimos culpadas de o deixar de parte.

A Dona Aveia diminuiu a sua atenção, entrou em modo Pausa e bocejou no colo de recomendações mais serenas… especialmente para ela que não fala russo e quando ouviu a Célia e a Renata discutirem se Tolstoi ou Dostoievski, deu um ar de sua graça com a cauda e fez um arrear estratégico — sinal de que era hora de deixar fluir a conversa sem moderação.

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E lá fomos nós, partilhando sugestões, umas tão desvairadas como um resumo de novela juvenil, outras profundas como se publicássemos um tratado filosófico caseiro.

Entre gargalhadas e lampejos de sabedoria, houve quem trouxesse leituras de autores que brincam com estilos, quem comentasse dramas mais sombrios, e quem citasse frases inspiradoras só para adensar o grau de profundidade literária — tudo isso enquanto a Aveia dormiam, ora na sua varanda privada ora na cama fofa e fazia círculos suaves ao nosso redor, passeando-se entre nós como quem garante que é visto, sentido e nunca esquecido… como o fazem certos livros e alguns deles tiveram palco nesta reunião, quem é como quem diz: “James”; “Orbital”, “Boulder”, “Túmulo de Areia”, “As malditas”, “melhor não contar”, “O bom mal”, “Triste Tigre”, “O Paradoxo do Cérebro” ou “As crianças adormecidas”

E se todos estes títulos não bastassem, há ainda a apologia de “Mudar de ideias” agora peneirada no crivo de Julian Barnes, entre mais títulos repetidos e tantos outros de policiais sangrentos e uns quantos títulos de livros-piscina que os roditas tanto gostam. Upa, upa, especialmente no verão para ler à sombra e á beira-mar.

Chegou o momento da pilha de sugestões, desta vez digna de fazer sombra a qualquer outra erguida este ano. Com direito a segura e-coisos cristalinos que quase quase não se fazem notar, esquecendo que estes dispositivos que se auto-intitulam de livros não são sequer capazes de se erguer sozinhos, nespecialmente nestas temperaturas. E sem mais demoras ou referindo quem sugeriu o quê e qual (e entretanto acordamos a patuda), fica a nossa bonita pilha de sugestões para lerem até ao Natal que deve ser quando voltamos duas mãos cheias de gente a animar as tardes da nossa Aveia.

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Apontamentos de leitura – II – Emily St. John Mandel

Ana CB, 20.08.25

 

O primeiro livro que li de Emily St. John Mandel, há cerca de um ano, foi “Estação Onze”. Gostei da escrita e da história, e ficou imediatamente na minha lista de autoras a seguir de perto. Os seus dois livros mais recentes encheram-me ainda mais as medidas, confirmando a minha impressão inicial. Está definitivamente incluída no grupo das minhas escritoras favoritas.

 

ESTAÇÃO ONZE

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As relações humanas antes e depois de uma pandemia apocalíptica. A arte como necessária à sobrevivência. Um tema ousado e bem desenvolvido. Escrita fluida e motivadora. O enredo anda para trás e para a frente, estabelecendo aos poucos uma teia de relações entre as personagens principais. Nada está ali por acaso, e não há facilitismos no enredo. Muito bom.

 

O HOTEL DE VIDRO

O Hotel de Vidro - 1

 

Uma história circular sobre várias pessoas envolvidas e/ou afectadas por um esquema Ponzi (inspirado no caso de Bernard Madoff). Um leque de personalidades que se cruzam, cada uma com as suas motivações e angústias. Os acasos que levam a mudanças radicais de vida, ou por vezes a tragédia. As fragilidades humanas. Uma escrita limpa mas cheia de subtilezas, que projecta imagens na nossa mente, sem ser vulgar nem cansativa. Muito bom.

 

MAR DA TRANQUILIDADE

Mar da Tranquilidade - 1

 

Excelente. Uma história tecida de viagens no tempo e interrogações: somos reais ou apenas uma simulação, num mundo virtual gerido por um software? E isso terá de facto alguma importância para nós? Se viajássemos no tempo, seríamos capazes de resistir a não o alterar? O enredo é-nos dado aos pedaços, que são sendo unidos pouco a pouco por uma linha condutora, e o fim consegue surpreender. Tem em comum com “Estação Onze” a ideia de errância, de história que é um patchwork, de inevitabilidade – a interligação entre as personagens explora a perspectiva de que nada acontece por acaso. Curiosamente, numa espécie de spin-off de “O Hotel de Vidro”, envolve algumas personagens secundárias deste livro. Contudo, o pano de fundo da história é completamente diferente, pese embora tudo gire sempre à volta dos sentimentos que nos tornam realmente humanos. Entre estes três livros da autora, é o meu preferido.

 

Encontro de Julho

Patrícia, 14.08.25

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Juro-vos que podemos mapear os dias mais quentes do ano através dos encontros da Roda dos Livros mas nós somos resistentes ao calor e à preguiça dos dias quentes. E somo-lo porque estas tardes são uma forma de ser um bocadinho mais feliz. E quando somos poucos podemos falar todos de muitos livros, dos que gostámos mais e até daqueles de que não gostámos tanto.

Os livros fazem-nos felizes. Mesmo aqueles que nos fazem perder a fé na humanidade como A revolta do Homem Branco, de Susanne Kaiser, um dos livros que a Cristiana nos trouxe. E para balançar sugeriu-nos também o A morte de uma livreira, de Alice Slater; Desgraça, de J. M. Coetzee e Boulder, de Eva Baltasar e Como amar uma filha, de Hila Bloom.

A Sónia falou-nos das suas impressões sobre o Lobos, de Tânia Ganho; Intermezzo de Sally Rooney e Mrs March de Virginia Feito.

A Célia sugeriu-nos O Covil de Pompeia, de Elodie Harper e Alguém falou sobre nós, de Irene Vallejo mas também falou de Todas As Árvore morrem de pé, de Luísa Sobral, O peso da Culpa, de Hjorth e Rosenfeldt, Eu que não conheci os homens, de Jacqueline Harpman e das Aventuras de Tom Sawer e Huckleberry Finn, livros de Mark Twain.

A Ana CB levou-nos de viagem com o Regresso à Patagónia, de Paul Theroux e Bruce Chatwin. E a esta sugestão juntou outra, O Mar da Tranquilidade de Emily St. John Mandel, de quem também leu o Hotel de Vidro; Pequenas Grandes Mentiras de Liane Moriarti; de Volta a Casa, de Jeanine Cummins e Monstros, de Claire Dederer.

E eu trouxe para a discussão o Cadente, de Mário Rufino (autor que já nos fez, por várias vezes, companhia neste grupo de leitores) e Catarina e A beleza de Matar Fascistas de Tiago Rodrigues.

Boas férias e boas leituras

Apontamentos de leitura - I - “O Pacto da Água”, Abraham Verghese

Ana CB, 13.08.25

 

O PACTO DA ÁGUA

Abraham Verghese

O Pacto da Água

 

Histórias em volta de uma família, e suas ramificações, no sul da Índia (Kerala) entre o final da 1ª Guerra e o final dos anos 70.

Medicina (o autor é médico), arte, culinária, as castas e questões sociais, tradições – tudo se entrelaça para criar uma narrativa fluida e maravilhosa, cheia de sensibilidade e ao mesmo tempo crua, com personagens inesquecíveis e sempre muito humanas, mesmo quando têm um toque de irrealismo. Destinos terríveis, coincidências (ou não), redenção e muito amor.

Uma escrita belíssima, com reflexões e pormenores que me fizeram ter vontade de ir conhecer a região.

Um livro excepcional, incluído sem reticências na lista dos melhores livros que já li até hoje.

 

«Eliete» de Dulce Maria Cardoso :: Opinião

Entre cenas da vida normal, as fendas da maturidade e uma família destelhada

Efeitocris, 31.07.25

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A vida de Eliete decorre dentro da normalidade. Vive-se entre jantares, idas ao ginásio, mensagens trocadas com a filha e a mãe, e uma relação conjugal que se cumpre mais por hábito do que por afecto. No entanto, é nesta vida dita “normal” que Dulce Maria Cardoso faz emergir uma inquietação subtil, mas persistente — o ruído da privação. A privação de sentido, de escuta, de possibilidade. A Eliete não é uma mulher em colapso, mas alguém “a perder o pé à vida e a estar ancorada na dúvida”.

A família a que pertence é uma família destelhada, onde ainda sobram algumas telhas. E talvez seja isso a normalidade: viver sob uma estrutura que já teve mais força, mais abrigo, mas que continua de pé, colada por uma argamassa difícil de nomear. O que a mantém? O hábito, o dever, o medo da perda, ou apenas a falta de energia para reinventar tudo? A resposta ficará com cada leitor.

O livro é também sobre as ligações familiares como herança — e como prisão. Eliete vive rodeada de um passado povoado por mortes precoces, como a do pai, cuja ausência deixou um “amor filial sem destino”, uma dor sem pouso. A utilidade da morte, diz-se, é o sofrimento que deixa nos outros. E é isso que se impõe: os fiapos de memórias, colados por cheiros, fotografias, conversas repetidas, e que agora, com a doença da avó — guardiã maior dessa história —, parecem ameaçar desaparecer de vez.

Com uma escrita de precisão sensível e frases incisivas, Dulce Maria Cardoso evita qualquer dramatização. A protagonista move-se com dúvidas reais, inquietações que pertencem a qualquer pessoa — não são “dúvidas de mulher”, nem dramas íntimos exagerados. A autora dá corpo a uma personagem que questiona o papel que desempenha nos outros sem abdicar da procura de um espaço próprio. E, nesse movimento, toca questões fundamentais: como preservar os laços sem nos apagarmos? Como continuar a amar sem nos reduzirmos?

A falta de imaginação, o estar atracada à realidade, são formas de sobrevivência. Eliete não explode — resiste. E essa resistência ganha forma nas suas pequenas rebeliões: permitir-se apaixonar, por exemplo, é permitir-se a sonhar com um futuro, e isso, por si só, é um ato que desequilibra. Porque ao sonhar, Eliete desafia a previsibilidade do quotidiano, esse dia após dia onde tudo parece controlado mas nada é plenamente vivido.

O romance é um inventário de falhas, de silêncios e de tentativas. Mesmo que ela própria não quisesse fazê-lo, lá está “o dedo da mãe” para lembrar tudo o que ficou aquém. E talvez seja nesse entrelaçado de dores e tentativas que o livro mais nos toca — porque reconhecemos ali não só Eliete, mas muitos de nós, a tentarmos viver com as telhas que restam.

"Jantar Secreto" de Raphael Montes - Opinião

Entre a Crítica e o Espetáculo do Horror

Efeitocris, 29.07.25

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Raphael Montes, conhecido pelo seu estilo provocador e sombrio, leva-nos em Jantar Secreto a uma narrativa onde o grotesco, o absurdo e a crítica social se entrelaçam. O livro apresenta-se como um thriller macabro, centrado num grupo de jovens que, em (supostas) dificuldades financeiras, decide organizar jantares clandestinos para uma elite disposta a pagar fortunas por um prato incomum: carne humana. No entanto, o que poderia ser apenas uma trama de terror ganha uma camada extra ao roçar questões morais e sociais inquietantes.

A analogia com a exploração animal na indústria alimentícia é evidente: Montes subverte a lógica habitual e, ao inverter os papéis, obriga-nos a questionar a hipocrisia do consumo de carne e até que ponto estamos dispostos a ignorar o sofrimento dos animais quando dele retiramos algum tipo de benefício e prazer.

No entanto, e importa muito destacar, essa crítica, por mais pertinente que seja, corre o risco de ser obscurecida pelo próprio espetáculo de horror que o livro encena, fruto das descrições sordidamente requintadas. Conseguindo, mais uma vez, sublinhar a hipocrisia do consumo de carne animal: isenta de cheiro e imagens do sofrimento dos animais quando a vemos no prato!

As descrições viscerais, muitas vezes gore, não apenas chocam, mas podem também afastar leitores que se sintam desconfortáveis com esse tipo de narrativa. Mais do que provocar reflexão, o horror gráfico pode conduzir à dessensibilização, tornando-se num entretenimento mórbido e até desconexo, afastando uma maior tomada de consciência. Essa desconexão é muito dada pelo tom da narrativa: se, por um lado, há uma tentativa de denuncia social, por outro, a linguagem e a abordagem juvenil do grupo de protagonistas dá um ar quase banal a atos de extrema crueldade.

Outro ponto que ressoa na leitura é a capacidade humana de normalizar atrocidades quando há um ganho envolvido. Jantar Secreto não é apenas um livro sobre canibalismo, clandestinidade e redes de tráfico, mas sobre a frieza e a maldade que podem emergir quando a conveniência se sobrepõe à moralidade.

E é nesse ponto que o livro ainda se torna mais inquietante: não por nos apresentar o horror de forma crua, mas por nos fazer perceber que, em algumas instâncias, a realidade não é assim tão diferente da ficção. E é aceite! A maldade é aceite e justificada.

No final, Jantar Secreto deixa uma questão em aberto: o impacto emocional gerado pela leitura é suficiente para despertar consciência e mudar comportamentos ou trata-se apenas de um choque momentâneo, que se dissipa no ritmo do thriller?